terça-feira, 14 de janeiro de 2020


A força da poesia atemporal

A alma e a lua

A alma, como a lua,
é agora, e sempre nova outra vez.
eu vi o oceano criando continuamente.
Desde que eu percorri
a minha mente e meu corpo,
eu também, Lalla, sou novo,
cada momento novo.
Meu professor me disse uma coisa,
viver na alma.
Quando isso fosse assim,
eu comecei a ir nu,
e dançar.
Lalleshwari (1320 - 1392 / Pandrethan, Srinagar, Kashmir / India)






Retratos na parede

Qual a importância da imortalidade
Se os próprios são tão mortais,
A ponto de estarem capengando
Na escadaria dos “imortais”?
É de se pensar na curteza da vida,
Ali representada na hora do chá...
Quantos sobreviverão
Ao próprio sepultamento?
Onde corpo e alma se despedem
Melancolicamente...
Imortais seriam os retratos nas paredes
Não fora a hora da repintura,
A troca por obras abstratas,
Quando jogam atrás da porta
A memória escavada...







Serventias

Para que servem as vestes
Senão para sepultar ocultos
Os insepultos suicidas
Que se jogaram ao mar?

No cais em que desabrocharam
Não teve força o lugar
Para acolher essas vidas
Que se jogaram ao mar...

Para que servem as rezas
Senão para relembrar
Esses pobres desencontrados?

Para que servem os suicidas
Senão para comprovar
Nosso fascínio com o mar?





Fogo extinto

Parece fogo o fogo extinto,
A brasa treme, a cinza fecunda
O fogo aos pés de barro...
Aqui jazem corpos
Que não voltaram...
Parece fogo a lenda contada,
A vontade extinta parece lauda,
A brasa treme, fecunda o fogo.
O fogo queima vontades idas
Porque a porta não se abriu
Aos pés de barro...











Nos cantos do fim de noite

Nos cantos do fim de noite
Onde se escondem os perfis
Das paredes sofridas
E apagam-se as luzes das janelas
Sofre
A solidão infinda em que que se isola
A menina que acreditava
Nas fadas...














Coincidentes

Talvez nesse mês o calor, imenso,
Faça aquecer os mortos idos...
(A cada verão tem menos gente
 Que eu conheça)
O mundo não diminui,
As casas novas passeiam e sorriem
Na calçada, é preciso esquecer
As velhas casas e pessoas da rua lavada...
No eu fechar os olhos morre mais um,
No eu abrir os olhos nasce mais um,
No eu olhar de lado some outro...
Para repor a safra dos que se foram,
Não há tempo para rezar por eles
Ou festejar pelos chegantes.
No eu fechar os olhos definitivamente
Outro já aponta no horizonte...






Para que eu sobreviva

Nada a dizer por hoje,
Apenas repensar o que disse antes.
Nada a prometer para amanhã,
Apenas tentar o melhor a ser feito.
Como podemos anotar receitas
Se mudamos de ideia a cada ato?
Nada a arrepender do feito,
O passado é o passo dado,
Apenas corrigir o próximo passo
E rumar para o dia amanhã
Com o mínimo de mal feito...
Para que eu sobreviva
Terei de somar meus dias
E assomar meus defeitos
Em harmonia com o refeito
A cada vez menos errôneo,
Mais reto e digno de quem
Fez por mim o que não pude
Retribuir direito.
sergiodonadio



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