segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Cenário dezenove
Os pés latejam o dia viajado,
Cada um fugindo de seu passado,
A égua fura a cerca, o mata-burro,
Corre de pés esfolados
Sangrando sua vontade,
Calcando futuro...
Carne de égua, mortadela,
Não assombra sua vontade de ir,
De ir-se como eu, como nós,
Pele esfolada, costela ardendo
Sob o manto peludo de cada um
É desgraça: a pedrada do mundo
Sobre a dor do moribundo.
Velha égua de levar donzelas
Pelos jardins e pomares...
Velha de carroçar milho pro terreiro,
De fazer girar o engenho,
A esperar-se mortadela...
Corre, vizinha, que faço tua sina
A minha, na espera.
Cenário vinte
Jogo pela tua sorte,
Quero que vença o farpado,
Corra tua vontade por esse prado,
A pascer tua aposentadoria...
Tão merecida quanto a minha.
Nem as moças da charrete,
Nem o milho, nem a cana,
Lembram sua convivência...
Nem este matador sem sua crença,
Só resta acender-te uma vela
Nos estrepes da cerca viva, 
das farpadas, das marchas e corridas,
A perder-se no cansaço
Da esfolada canela, a escafeder-se
Nisso, de correr comigo, 
No fim de nós ambos, no escambo
Virar esse bagaço
Em curto espaço.
Sergiodonadio.blogspot.com
Editoras: Saraiva,Perse, Incógnita Portugal 
Clube de Autores, Amazon Kindle

domingo, 28 de fevereiro de 2016



Cenário dezessete


Acordo, assusto assustado
O assustado do meu lado,
O trem vagueia o trilho alisado,
Mostra a face vermelha
Do vagão descarregado
Cheirando porcos e vacas...
Sonhei que fora descarregado
Com os porcos e vacas
E o homem vestido branco sujo
Cheirava excrementos de nós,
Comendo desse brejo,
Tomando dessa cerveja
Senti-me mal cheiroso, levado
Pelo sonho de ter vivido
Entre essa porcaria,
Mal dormido, mal acordado
Vejo os porcos ao lado,
No brejo ribeirinho abanando
Seus rabos parafusos, felizes...
De estarem si revividos.



Cenário dezoito


Corro para o banheiro
Lavar-me desse sonho,
Volto, o prato feito lá está,
Fuço esse brejo que é de direito
E sinto-me dormitando entre eles
Numa harmonia perfeita.
Aqui me dou por chegado,
Deito na rede de espera
Sonhando, o olho acordado...
No horizonte a cavalgada da égua
Leva-me a ouvir passos a léguas...
Sentindo sua vontade de chegar
Mas tendo por muro a velha pedra,
A que também a mim ameaça,
O laço que a persegue na cerca viva,
Triste cena de verdade
Estrepando patas...

Sergiodonadio.blogspot.com
Editoras: Saraiva,Perse, Incógnita Portugal Clube de Autores, Amazon Kindle

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Cenário quinze
“Sentimento
0 Não se mede pelo gesto,
Pois certos gestos não levam
sentimento algum”
O sentimento é o não escrito,
O que se deixou de falar, contar,
Por ser a palavra pequena demais
Para mostra-lo inteiro...
No ser o sentimento depende
Das surras que se leva,
Ninguém teme a mão até que
Ela esbofeteie sem réplica,
Por muito que a mão
Não amedronta, vazia,
Mas, carregada com a pedra
Da vingança, sarcasmo, inveja,
Fará o medo aflorar nos vivos...
A mão que faz o sermão afeta
Menos os crentes de seu gesto,
Mesmo abusivo.

Cenário dezesseis
A mão que acena adeus chora
Seu gesto à mão que pede socorro,
Grita seu horror frente à outra mão,
Mais que a fala gesticula sua garra!
Enfoca pelo medo o arremedo.
O padre batiza pelo gesto,
O vendedor negocia pelo gesto,
O matador suplicia pelo gesto.
O gesto gesticula cada resto.
Gesticulando sonhei estar fofando
O brejo dos porcos no capim
Gordura, comendo seus ossos...
A merda cagada nos esgotos,
O gosto... O desgosto... Sonhava
Sair voando como a borboleta,
Sair coaxando, comendo borboleta,
Sair nadando, ciscando o fundo do brejo,
a procura do outro brejo...
O que nos cerca e abate o gesto.
Sergiodonadio.blogspot.com
Editoras: Saraiva,Perse, Incógnita Portugal
Clube de Autores, Amazon Kindle.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Cenário treze
Por causa da ciência
Nos esterilizamos com álcool,
De passar em feridas...
Ou bebido...
O valente que matou o outro valente
Esterilizou-se de tal modo
Que, morreu com a feição
Fazendo bexigas... Como se de festa,
Explodindo a quem chegasse perto.
O álcool bebido cheira mal,
Não como o álcool passado,
Cheira podre, em carne podre,
Como mal cheira podre
Em boca podrida a tanto mole,
Quanto lida... Podre... Podre... Podre...
Sendo preciso frisar tal diferenciação:
Da madame que levou um tiro
Ao milhão de vietnamitas
Na mesma situação.

Cenário catorze
Um milhão de tiros na cara
De vietnamitas é treinamento
De destreza, para depois
Dar um na cara da madame
E sair nos jornais
Em letras litrais...
Podre... Mais que pobre,
É o pobre negociador
Das fomes e das almas
Com a farinha podre para estômagos
E a palavra, podre, à consciência
Podre da cultura podre do senhor
que apodrece dando esmola
Tentando lavar a alma
E livrar-se das pedradas...
Das coisas podres inventadas:
Remédios que deixam doente
O são com dor de estômago,
Seringas com hepatite
Naqueles com anemia...
No trato como destrata
O que lhe parece menos.
Sergiodonadio.blogspot.com
Editoras: Saraiva,Perse, Incógnita Portugal
Clube de Autores, Amazon Kindle.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Cenário dez
Já o medo depois crescido
No menino crescido,
A rua onde eu morava
Perdeu sua graça.
Pedradas nas costas suadas...
Sorrir? Somente aos mortos,
Inofensivos, lugar de cochichar
Sorrisos é na paz dos mortos,
Gente que deu pedrada
Pedindo perdão, testa doída,
Amassada, culpada, culposa,
Ruidosa, ruinada...
Testa de gente amassada,
Agora virando nada.
A cena dizendo bom dia,
E ter de responder bom dia
À gente que conheci
E agora não conheço, tão quieto,
Suplício maior sendo aceito
Em branco... Em branco...
Enlevo do branco névoa
Desaparecendo...

Cenário onze
O medo lesou o encanto
Das pessoas que conhecia,
O medo dos brabões,
Da brabeza dos medrosos,
A covardia dos raquíticos...
Lembrar lembranças amedronta,
Contação de fatos ou folclores
Põe a vida em perigo, do medo,
Medo, das guinadas
Medo, das grinaldas
Medo, de esmeralda
Medo, do nada
Medo, Medo,
O medo covarde do corajoso?
O medo como parte do crescimento
Do menino, da menina, noções de medo
pelo medo, pelo medo...
Como cães com a queima de fogos...
Cenário doze
Tanta pedra... Tanta pedrada...
Que afasta de ti os chegados,
Fica tudo longe...
Se acostumando com os longes
Como morada,
Distâncias perigosas
Em que nos colocamos, a medo...
Tememos a proximidade
De nossos queridos inquiridos,
Éramos xeretas a uma época
De vividos... Sabíamos segredos,
Não segredos, desacostumados,
O medo da distância nos põe perto,
A saber de sapatos novos, zinzos,
Diz-se na ciência que vírus pega,
Nega que esse vírus te tomou...
E mostrarei o quanto se perdeu
Na sua essência de inda ser
Um ser gregário, mas com medo,
Delicado medo de passa-lo,
A esmo... À Exmo. A solitários.
Sergiodonadio.blogspot.com
Editoras: Saraiva,Perse, Incógnita Portugal
Clube de Autores, Amazon Kindle.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016


Cenário sete
Volto aos meus medos:
Na rua onde morávamos
A rua cheirou a pixe do asfalto
Se fazendo, o cheiro duro 
Entrando pelos cabelos,
O progresso passava
Pela rua onde morava
Da rua onde morava...
Onde morava tanta gente
Que apedrejava o que eu queria
Fosse verdade...
Eu quereria mesmo era não morar
Nessa rua cheirando pixe,
De onde moía café, buscava leite
Em balde, roubava mamão maduro
E nadava... Na água suja do tanque,
Jogar bola no campinho da paineira
Levava tiros de sal nos costados...
Ir à escola cortar as unhas
É o que me lembra
Das aulas...
Sergiodonadio.blogspot.com
Editoras: Saraiva,Perse, Incógnita Portugal
Clube de Autores, Amazon Kindle.
Cenário oito
Na rua onde eu morava
Moravam também tininho,
Caziano, caçula e o cão duque...
Tanto cachorro morando,
Poeira, barro, carroças,
Deztões para a matinê,
Do cofrinho das economias,
Economia sincera, desacreditada,
Aniversário com sarampo
Eu quieto no quarto
Ouvindo outros cantarem
A briga de travesseiros,
Cobertores para o durango kid,
Graxa pros rolimãs
Para a corrida no asfalto novo,
Antes da inauguração
Fizemos o primeiro trajeto 
Sem cheiro de pixe ardido
Nas narinas e na língua
Da gente da rua onde
Morava...
Cenário nove
Na rua onde eu morava
Morava gente miúda...
Crianças para mais não querer,
De noite contar estrelas,
Desenhar nas nuvens 
Cavalos voadores, elefantes 
Se desfazendo ao vento,
Catar pedras de gelo
Na chuva desastrosa...
De medo se foram todos,
Crescidos e maltratados,
Casados ou descasados,
Lembrar o sete de setembro,
Direita batendo, direita batendo, 
direita batendo, sempre a direita
Batendo mais forte, os pés ardendo,
A testa ardendo ao sol de setembro,
Ao sol da independência,
Fanfarra e muita farra, 
Acerta o passo!
Por medo assim acertando...
Uniformizado
No azul e branco.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Cenário cinco
Dar de comer à grávida
Terra temperada mal passada...
Onde estará fulaninha?
Como terá sido engravidada?
Quantas pedradas levou da vida?
Quantas vidas velou fulaninha?
E os carinhos que merecera,
Que outro lhe prometera...
Fulaninha das pernas soltas,
Ossadas, bundinha fofa,
Sonho apalpando-se menino,
Querendo ver de mais perto,
Querendo, tocar, puxar,
Saber como era ser menino
Nos terrenos do mandris...
Lembro quando vejo meninas
arrumadinhas e pouca moleca
Assanhando meninos...
Pouco quintal, pouca calçada...
Se não fosse o medo das pedradas,
Teríamos sido felizes?

Sergiodonadio.blogspot.com
Editoras: Saraiva,Perse, Incógnita Portugal
Clube de Autores, Amazon Kindle.
Cenário seis
Me enterneço com a vida
À volta desses sonhos juvenis
De agora... De antes...
Pouco tempo para molecar,
Meninos machos e fêmeas
Arrumados pras vitrines,
Talvez sonhando passarinhos
Soltos no pé da escada...
Um pomar carregadinho,
Umas molecas daquele tempo,
Umas assanhadas meninas,
Que me lembro... Lembro
Uns guarda-pós para escola,
Uma escola de verdade,
Cortando as unhas sujas,
Apaziguando as verdades,
Surrupiando inverdades...
Mas eu estava só poetando,
Cochichando meu sorriso
Com os mortos
Desta tarde.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016



Cenário três
A voz do piá relembra
Tempos de chibarrada...
Pobre velho, amarelo de vontade,
Dão-lhe arroz em sopinha,
Quase nada...
Tiram sangue para exame,
Pensam estar hepático...
Pobre velho, louco pra comer...
Uma menina, uma quarentona,
A velha paquerando no tricô...
Mas ao medo das pedradas
Esconde suas vontades,
Sente-se miúdo, diminuído
Pela fala alta do rapazola
Que o pensa surdo de vez,
E da menina que cruza as pernas
Na sua frente, sem perceber
Na ânsia que isto lhe dá...
Pobre velho... Deixado ficar
Entre a morte e o abandono
Neste lugar.

Sergiodonadio.blogspot.com
Editoras: Saraiva,Perse, Incógnita Portugal
Clube de Autores, Amazon Kindle.

Cenário quatro


Pobre menina olhando
Os cachorros na calçada da ruela,
Com medo de levar pedrada.
Eu quero, quero que a bala passe,
Fure a parede e me dê uma fresta
Pra respirar esse ar de festa,
Sem fungo ou mofo,
Ou tosse ou pigarro solto...
Eu quero... Quero ser menino de novo,
E ficar vagando os namoros
As pernas de fulaninha,
Moleca de meus afagos,
Ossuda a mais ser
Nossa moleca de afagar...
Quero voltar ao tempo sem pedrada,
Que as pedras do tempo me doem
Nas pernas, nas mãos, na boca,
Até nos ouvidos zunindo, me doem...
As pedradas que levei
Por afagar fulaninha.

domingo, 21 de fevereiro de 2016



Cenário dois

O mundo está louco!
Desse mundo louco só vem pedrada!
Federico Garcia Lorca estava poetando,
E levou pedrada!
Eu vou fechar carranca
Para esta cidade de pedra na mão,
E vou sorrir aos mortos,
Sem ganhar ou perder,
Que os mortos se acalmam de vez.
Ainda serei apedrejado
Pela ação de ir e vir, sem regras?
Não tem importância,
O importante é ir e vir, sem regras.
A regra na mulher menstruada
Fê-la sensibilizada
De levar pedrada...
Levanto a fome para a casa adoidada,
Escorrendo sangue pela entrada
Chorando qualquer pedrada
Vinda do nada...
Do nada!
Sergiodonadio.blogspot.com
Editoras: Saraiva,Perse, Incógnita Portugal
Clube de Autores, Amazon Kindle.