quinta-feira, 19 de março de 2020


Remador

Os sonhos irrealizados,
Tantos... Fazem do futuro
Parte do passado.
O presente monótono não destoa,
Segue ao mesmo tom
Do remo na lagoa...
Remas contra a correnteza, devagar,
Entoando o mesmo verso, atoa...
Na subida das pedras
Em que se empedra o tempo amorfo
Como a máscara do morto
Esculpida na proa,
Desenhada carranca para assustar
Assusta a própria, já vencida por outras, menos frágeis, igualmente toscas,
Como alguém que, ao impor limites
Limitou-se a ser apenas remador
De sua própria dor,
Entre outras...


Âncoras arredadas

Parto sem rumo,
Que o rumo é nada,
Percorro vias de fato
E fatalmente surjo
Onde se fecha o caminho
Em vales, quando as valas
Se fizeram caminho...
Âncoras arredadas
Se transformam em guias
Neste mar submerso de vias...
Chego ao novo porto,
Que eu já sabia,
De sonha-lo porto
Por sabe-lo guia...







Tombos

O que existe em mim
Que não sou eu?
Todas as fases se perdem
No que em mim se perdeu...
O que existe em mim
Que justifique meus passos
Em sonhos irrealizáveis?
Será a polpa da fruta
Que não comi por medo?
Será a flor não ofertada?
O que existe em mim
Se não a verdade de mim?
Sonhei ser adulto
Quando em criança...
Sonho voltar àquela mocidade
Perdida nos sonhos...
O que existe em mim
Que não sou eu
Nesses tombos?


Eis que voo

A manhã acorda-me
Para outra realidade,
A do canto dos pássaros
E do choro das comadres...
Que sonho agora
A manhã me proporciona
Sonhar acordado?
É um pesadelo pensar-se
Num dia inteiro?
Talvez não seja de todo mal
Distender-me ao nervo,
Parar a câimbra que me veio
Entre o sono profundo
E o profundo desenleio...
Por aqui passam pessoas
Que não sonham, apenas
Batalham o pão do dia entre
As desnecessidades
Necessárias...




O que mais me afeta
É perder essa festa...
Agora sim,
Acordado em desacordo
Levanto espreguiçado
E vou à rua, contrariado,
Lá me sei outra pessoa,
A que se ilude atoa
Com pensar tronar-se
Pássaro, eis que voo...











O escuro brilhante das estrelas

Terminados os serões
Que há de ser
Da experiência da dor?
Alguma alternativa válida
De se tentar reviver?
Faz muito frio lá fora,
Cá dentro o coração
Aquece os sonhos,
A mente trabalha os sonhos,
As mãos agilizam os sonhos,
Então por que os sonhos
Não se realizam no contexto?
Terminados os senões
O que sobra de real
Além dos pores de sóis diários
E o escuro brilhante das estrelas
A mostrar o outro lado
De um universo inteiro?



sábado, 14 de março de 2020


Zoológico

Essas grades
Prendem
Animais mortos,
Assim os vejo,
Mesmo que
Ainda se debatam contra
Incompreensível prisão,
Não estão vívidos,
Sua liberdade tolhida
Matou o que
Lhes fora vida!












Parece que pessoas queridas
Cortam vínculos sem demora,
As com que cruzamos na lida
São as que antes vão embora...







A vida se determina
Nessa coroa de provas,
Se o teu tempo termina
A alma em ti se renova...








Por enquanto, só enquanto
Podes sorrir do mal tempo,
Chora de quando em quando
Que de ti afrouxam o lenço...







Guarda o suave encanto
Que tua vida de ti espera,
Enquanto a dor for canto
O amargo da morte já era...






O poema é feito de poesia

Quando ocorre dano ou ganho,
Se alguém renasce ao teu lado,
Se alguém morre ao teu lado,
O acontecido se torna poesia

E cabe no poema, se vivido,
Entre soluços e riso frouxo...
A poesia completa esvoaçada
Da mente do escrevinhador

À mente do que declama
Sem medo de declamar-se,
Não guarde o medo do poeta

Que escreveu silenciosamente,
Guardado numa velha gaveta,
Não o verso, o que expressa...

sergiodonadio


Derradeiro

Da última vez que te vi, amigo,
Caminhavas pesadamente só,
O olhar banhado em lágrima,
Não me viste, por não ver mais,

Mas penso, o que haveria dizer
De vossos dias, se nossos dias
Se perderam lá atrás, d’outras
Vezes que não vi a ti, amigo,

Eu caminhava pesadamente só,
O olhar esquecido de lacrimar,
O que teria eu para dizer disso

Embaçado momento revivido
Daquele tempo de desabrochar
Se já faz tempo não vivo mais?






Cada de nós tem história,
Quem da vida não diz nada
Nesse tempo de vitórias
Fez da vida arquibancada...







Tempos difíceis,
Esses de coronavirus,
Mas fazem esquecer
Outros virulentos idos...






Alvorário

Passei do tempo
De alvorar demoras,
Responder ofensas,
Enquistar-me com
Víboras da hora...
Não tenho tempo
A perder respeito
A quem de direito
Me furtar as horas...
Deixo para outros
A indignação que
A todos explora,
Sou d’outro tempo,
O tempo de virar
As costas e partir
Embora...







A vida é um pavio aceso,
Não tem delineado
Seu bizarro segredo...

segunda-feira, 9 de março de 2020


A pena
Reduz-se a meia palavra,
A outra metade silencia,
E pena...








O suplício suplicia?
O silêncio desvenda
O princípio que principia,
E vira tema...






Há um século

O Poeta se encantava
Com a máquina à vapor,
À diesel, à explosão combustiva
Como a nova era...
(Que já era)
Agora a poesia se encanta
(Ou chora)
A inquietação cibernética...
Há um século a modernidade,
Agora obsoleta,
Trazia novidades, hoje vencidas,
Isso mostra que o tempo
É só de idas...









Malas prontas

Fazer as malas
Para o não partir
Talvez fosse, ou seria,
A melhor viagem,
O descanso da viagem...
O deixar de ir por ir,
O ficar por olhar
Distâncias
Daqui....













Esta janela

Esta janela,
Se me abre pela manhã,
Atiça a imaginação,
Ouço pássaros e cães,
Motores e discussões...
Quer dizer que estou vivo!
O que se me abre
Com esta janela abrindo
É um mundo
Na sonhada viagem
Sem sair daqui...
Estou perto de todos os portos,
Dentro de todos os templos,
Banhado de todas as praias
Com todos os recantos
E seus encantos...






Remissivo

Toda maldade se concentra
Num pensamento de revolta,
Vingança, arrependimento...
Se refaz a cada ato impensado
E se expõe a ser sentimento,
Floresce onde a paz fenece
No agir impensadamente...
Redime não quando o que
Deveria ser esquecido
Torna semente...












Manhã azul

O dia dá-se por chuvoso,
A manhã sorria o azul
De um tempo límpido...
Depois fechou-se,
Talvez por raiva ou instinto
Seguindo a cara desse frio
Na vontade de ir-se...
Antes que contamine
Essa nuvem negra
Viro do avesso a manhã
Com sendo um casal brigado
E me avexo...










Lauréis

As portas ficam longe
Quando se as quer perto
E perto quando
Se quer distanciar delas...
Por isso todas não estão
Abertas na hora incerta,
Porque a gente as fecha.
A vontade se perde
Na incapacidade de ir-se
Quando é realidade
Despedir-se ao choro...
Tentar até o fim do trecho
Pois todos os trechos são
Iguais na desigualdade
De seus louros...


 






Tudo é válido
Na convivência diária,
Do riso que renova
Ao pranto que estorva...








Basta de lamento
Que o verbo é curto
Urgente o intento...







Como uma lágrima

Como uma lágrima,
Perdida em um adeus,
Choras a última despedida
Em seu vago olhar...
Como uma lágrima
Esquecida de verter
Pensas a próxima saída
Entre esses encontros
Furtivos entre tu e eles...
Com uma lágrima
Salgas os olhos outra vez
Tentando esquecer
A dor em dívida...









Contemplares

Aos olhos
Apagados de um cego
A paisagem
É transparente...
A cor que vedes
Em teu estranho ego
É a mesma cor
Que ele sente...














Entre a hera e a era

A hera e a era
Se unem no muro em frente,
Cobrindo pichações dos tempos
Formando pichações recentes...
Quanto basta ao olhar furtivo
Saberem-se descobertos
Por misantropos esquivos?
Quanto baste, além do esquecimento,
A lembrança de tudo variada?
Talvez o tempo remonte ao tempo
E a letra que se destacava
Desfaça o que se desenhou
Em foice e forca de cada fase...
A hera e a era se unem
Para descrever, da história,
O que não ficou transparente
Naquela hora...





É o bicho...

Faz algum sentido
A vida parada ao meio?
No tratado de manada
A vitória que não veio...
Um tempo de rebuliço
Com tantos catando lixo
Na colheita de quase nada...
Faz algum sentido,
Pois na revolta é cantada,
Não o melhor das vidas,
Só as promessas dadas,
Como o menino que
Entregou-se ao vício
Ser apenado por isso
Quando o vendedor desse lixo
Lixa-se para o desequilíbrio?
Como saber se não lhe veio
O que lhe seria esteio?




Distendidos

Não me dobro à dor,
Seja de músculo
Ou de alma...
Seja de hoje
Ou herança desse tempo
Revivido dia a dia
Sem pejo...
Não me dobre, ó dor,
Que me sustento
Em doer a menos
A dor que penso...
Não se dobre a dor
Ao mesmo tempo
Em que me arrasto
E me distendo...
Que a dor, assim como
O prazer e o ranço,
Me fortalecem
Ao pejo...





Esperar sem desesperar
É explorar o tempo...









Queria ter um momento
Sem ossos... Impossível?
Talvez não, se caprichar
Em desossar o tempo...









Terra de ninguém,
Aqui todos os pares
São ímpares...









Talvez cansado de conviver
Quero apenas Viver-me...










A poesia caminha,
Eu procuro acompanhar
Nesse passo trôpego...








Negar a ditadura não,
Mas negar a necessidade
Da ditadura também não...













quinta-feira, 5 de março de 2020


Salgamentos

Secam ao sol
As carnes salgadas
E as cabeças crespadas
Em favor de uma
Próxima estada...
O chão tremula aos olhos
Sob este sol de ardume...
Secam ao sol
As madeixas das meninas
E os chapéus dos campeiros,
Deixados ficar nos mourões
Entre palmeiras nativas,
Na espera da brisa...
As carnes salgadas
E as cabeças crespadas,
Desluzidas...






Perdidos

Dizem que,
Dos mortos sobram
Heranças...
Bem, estou vivo,
Mas já distribuem
Uns livros soltos
De minha estante...
Um grampeador, uma bic,
Somem meus guardados
Antes de herançados...
Que se somem
À desesperança...












DE VEZ EM QUANDO,
DE QUANDO EM VEZ,
A LÁGRIMA LIMPA
A MELANCÓLICA TEZ









Como pode parecer grandes
Os pequenos aconteceres...









De curioso a furioso
A distância é milimétrica...










Os velhos lobos
Uivam calados...








Na dobra da esquina

Em cada dobra de esquina
Toparás com uma nova maria,
Aquela que passou rebolando
Já sumiu de sua vista,
Na poeira, a outra,
Com que vives sonhando,
Vai sorrir na tua poesia
Ao choro de alegria...
















Para mim a poesia
É a realidade a contar
A história do mundo
Na perenidade...
Mas eles preferem
Discutir politica,
Efêmeras autoridades...
Já já desautorizadas.
Pena que não saibam
Interpretar a realidade
Contida no verso solto
Entre as mentiras
De suas verdades...



Quando as palavras se sabem

Quando palavras se sabem
Sobre esta folha em branco
Tão-só as ordeno em versos,
Logo não são meus versos,

Palavras que se oferecem
Ao sacrifício da senescência
Sob o manto da imaginação,
Aí somos parceiros mornos,

Elas fortes, eu em fraquezas,
Perambulamos por alameda
Pois nos sentimos parceiros...

Talvez de tudo, ou de nadas,
Neste momento de solve-las
Dentre azáfamas estreitas.





Enxerto

Talvez não caiba em mim
Viver essa outra vida,
Sou o que me fiz
Sem tempo para guarida...
Entretêm-me em vasculhar-me,
A conhecer-me intimamente,
Sei-me assim plantada semente,
Sei-me fruto desse passado presente.
O tempo é inexorável
Faz-te pensar-se novo sempre.
Talvez não caiba em mim
Esta semente...










Treinagem

Treinei-me
Para ser utilitário
Num mundo
Feito de utilidades,
Onde cada profissional
Professa o que bem sabe,
Aprendi a fazer
Coisas descartáveis,
Assim fiz-me poeta,
Sou mais nada
Do que pensara ser
Por ter sonhado
Entre projetos novos,
Ultrapassados...


Sete quatro

Quando
O minguado futuro
Se torna passado
Nesse lento passo dado...
A parede espeça-se
Em muro intransponível,
E se torna barreira
Aos novos instantes,
Bem como não antes...

Quando
O futuro se tornou
Arritmo passado
O hoje está pesado
Pelas vontades idas
Há de reconhecer-se
Que o que foi vida,
Ainda sendo vidas,
Já desfaz segredos
Nesse caminho
Só de idas...
sergiodonadio