sexta-feira, 30 de janeiro de 2015



Termo antigo
Do livro Enclaves

Olho o homem engraxando sapatos
Que ele não usa. Nem ousa...
Cantarola uma canção baixinho,
Estrala a flanela nos sapatos lustros
E ri-se...
De suas pernas paralíticas
Ele não conta.
Conta do riso solto e da sua boa vida.
De suas calças rasgadas
Ele não conta,
Conta dos pastéis que irá comer
Com a grana dessa graxa.
Vês este homem e sua (dês)graça?
É preciso aprender com ele
A ser feliz
Com o que tem à mão:
Uma flanela e uma latinha
De nugget.








Esses gatos vadios
Entram e saem sem
Cerimônia.
Antes os espantava de casa,
Eles voltam sempre...
Enfim percebo
Que fazemos parte
Do mesmo meio ambiente,
E nos parecemos...














Labirinto


Cercada de heras
A poesia dentro do poema
É um labirinto verde
Entre saídas escusas...
É preciso engenhar cada passo
Para sair desse crivo
E voltar ao sol costumeiro
De lá fora...  Incólume.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015



Escriva
Do livro enclaves

É preciso por no papel
Minha memória,
As coisas vão me esquecendo,
As cenas em frente aos olhos,
As que ouço, as que vivi...
Revivento as tolerâncias do tempo,
Esquecendo de mim em planos
Imemoráveis...
Da meninice, que está indo embora.
É bom essa memória escrita
Que não deixa perder objetos
De viver-me.











Vida afora...


As pessoas se perdem
Vida afora...
Voam, rastejam, correm,
Ou simplesmente evaporam.
Essas pessoas têm historias
Ligadas à minha...
(meu avo, morto por uma tora)
As pessoas mortas por ideias,
Quando não por derrotas,
Uma junção de imemórias
Do tempo vencido,
Jogado fora.











Penar


Posso contar do vivido
Que valeu a pena...
Vale a pena penar
As consequências
Por te valido estar
Entre as querências,
Por ter viajado por mares
E ideias e sonhos
E desavenças,
Como a machucadura
Que cicatriza a experiência.













lápis


Como o desenho
Feito por uma criança
A vida
É o rascunho do sonho
Mesmo que não se iguale.
Seus planos, metas,
Nas cores desses desenhos
Não se copiam depois
Com a maturidade.
O cinza é o quadro final
Que sobrou da ponta
Do lápis.










trastes


Dou-me bem com a fidelidade
Das coisas,
E esporadicamente
Das pessoas.
Gosto que elas estejam aqui,
À mão
Quando me apego e não quero
Esquecer
Nem das cores nem dos formatos
Das coisas,
Nem do riso nem do chora
Das pessoas.
Assim somos,
Mas mudam tudo por hora, e,
Se mudam...
Outros, como eu, criam raízes
Nos sofás, cadeiras e mesas e camas,
Por isso preferimos reformar
Quando cedem,
Coisas e pessoas, guardados velhos
Imprestáveis talvez...
Como nós mesmos.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015



Convexo


Para o bebido no balcão aberto
O mundo lá fora é convexo
Como o mar ao marinheiro,
Como o infinito ao descrente
Que varre as coisas sujas,
Pensando o teto aparente.

O velho poeta dizia do inusitado,
Supria de rolhas garrafas vazias
E um ditado que as vazias almas,
Que um velho frade exprimia
O lado ruim como certo, assim,
Certo lhe fazia.

Mas o tempo, como o mar, visto
Da praia, é convexo, embora
Reto em que o olhar tem por si,
Bebido no balcão daquele bar,
O mesmo olhar que a religiosa
Presa ao claustro teria.







Pintura


À margem desse erro
Tingi as barras
De um desterro ainda fresco
De tinturas outras...

Quem fornicou a bela,
Que engravida tanto
Quanto
Minha aquarela
Em pranto?












Espera
                               Aos baleados
Do livro convexos

                     A mãe que espera filho
Espera-o são, rijo, sorrindo...
A mãe que espera um filho,
Vindo do ventre ou da guerra,
Espera-o cria nova, sempre
Outra vez o parindo.

A mãe não quer um filho
Pra rua dos esquecidos,
A mãe quer que seu filho
Seja o mais bem vindo
Dos outros da mesma
Rústica esteira.

Sendo a vida esta guerra
De rua, escola, destreza,
De alegria ou tristeza,
Ou que o mundo afronta.
Para cada mãe que espera
Há uma lágrima pronta.




Carrinho de mão


Depois de tanta evolução
Vejo o jardineiro com seu carrinho de mão
Como nos tempos passados...
Lá dentro a criança brinca no computador
Não mais na terra arada do jardim plantado.

Depois de tanta involução
A criança perde o espaço no jardim
Para sentar-se frente a esta tela
Inacabada
E não mais sorrir das coisas leves.

Depois de tanta volição
Alegra a criança vir desse jardim
Trazendo nas mãos uma flor
E os pés sujos da terra semeada
Que replanta ideias outra vez brotadas.



domingo, 25 de janeiro de 2015



Eu e os abandonados
Do livro cotidianos

Eu e os abandonados da cidade
Estamos na praça da matriz.
Parece que só eu os vejo ali,
Por isso me olham e me vêm,
Dando um leve oi com a cabeça
Continuam
A sua tarefa de nada fazer,
Nada sonhar, nada querer.
Passam carros com pessoas
Que não nos vêm...
Acho perfeito o momento,
Invisível...
Seria pior ser visto
E ter que ter resposta
A cada curiosa curiosidade
A respeito do tempo
Ou do governo,
Do morto e do vivo,
Todos incompreensíveis
Para meu fraco entender
De coisas e pessoas
Sadias.

Sergiodonadio.blogspot.com

Tardes no Rio de Janeiro


Passamos a tarde
Admirando a arte do museu.
Saímos, o carro não estava...
-Fui roubado!
-Não. Diz alguém, foi guinchado
Pela prefeitura,
Recolhido à garagem como
Se estacionado em proibido.
Mas não era isso,
Tanto que não haveria multa,
Apenas o valor do guincho
E a diária passada lá...
-Quer dizer: Fui roubado
Nesta cidade já cheia
(em todos os sentidos)
De bandidos, pela autoridade!
Desconsoladamente frágil,
Enquanto isso no jornal do dia
Os tantos homicídios e suicídios
Não solucionados...
Não registrados...
Esquecidos.



Correntezas


A vida passa muito rápido...
Sem tempo para viajar
O que seria aceitável ser...
Sem tempo para sofrer
O que é inaceitável sofrer.
Sem tempo para viver
O que seria bom viajar...
A vida passa num ápice
De tempo evoluído
Ou involuído,
Cabendo num trecho
O desmerecido merecer.
Indontem voamos sonhos,
Estivemos com mulheres
Que já envelheceram,
E envileceram conosco,
Cutucamos nossos algozes,
Que também se cansaram.

A vida assim tem parêntesis
Entre sonhos e acontecidos
Viver ferinamente
Atos de conhecer-nos
E desconhecidos passos
Dados ou deixados ser...
Passou-se o tempo de pensar
Futuros trechos a percorrer,
Apenas olhar o percorrido
E tecer requisitos...
Ser, como manda a norma,
Respirar, como não pode deixar
De,
Superar as asfixias e seguir
Sem pensar no que perdeu-se
Por olhar para trás.
A vida é simples demais
Para apenas calcular os passos
E ficar esperando acontecer.

A vida é correnteza,
Ou nada a favor
Ou morre tentando voltar
À nascente outra vez.
Melhor esquecer nomes,
Apelidos, datas,
Invisíveis promessas...
Apenas seguir o rastro
De todas as pegadas
Do outro, à sua frente.
Apenas viajar no tempo
À sua frente...
Apenas viajar o que seria
Aceitável ser, e ser
O que seria aceitável viajar
Outra vez.