domingo, 3 de maio de 2020




No jornal

Na notícia de cada dia
A mulher continua tendo preço
Nas contradições do avesso...
Aviltado pela formosura
Nessa propositura
Do prostituído apreço...








Antes que eu volte

Antes eu volte à realidade,
Que se afrouxem os sonhos,
Ou veleidades dessumidas
À desconjuntura dos ossos...
O que esperar dessa lida
Senão a mais pura sorte
Entre planuras do Norte?
Antes que eu volte grave
A desobedecer às vontades
Que esfriam até pedras
Pela fadiga da meia idade...
Antes que eu volte tenso
Que se arreie o tempo
No contratempo das tardes
Sem a deslicença das partes
Antes que eu seja saudade...


À deriva

Quem pode acudir a ida
Senão a volta concebida?
Um olhar adivinha a morte
Enquanto outro vê a vida...

Distraidamente à deriva
Vai-se levantando a voz,
Sempre a mesma parida
Entre as sortes consortes...

Apenas a voz esquecida
Eiva a promessa morta,
A que se refez aquecida.

O que esperar dessa lida
Senão a mais pura sorte
Entre planuras do norte?

Vi as estrelas de perto

Num tempo
Assim meio perdido
Entre a primeira infância
E a alfabetização forçada
Eu via estrelas de perto...
A falsa claridade do crepúsculo
Me estragou a visão de toldos,
Os crepusculares envoltos
Nessa página obscura
De meus olhares escusos...
Nunca fiz rebeldia aos atos
Dos que me conspurcaram
Nesse tempo desvivido....
Agora, recriando o passado,
O que faço com isso?



Brilho eterno

De holandeses africanos,
De indígenas panamenhos
Ou russos ucranianos,
O que fazer dessa gente
Que nasce em lugares errados
Na concepção de suas metas?
Mas isso é casuístico
Como o cão latindo ao nada
Do outro lado do muro...
Do outro lado desse muro
A identidade se define
Em polacos e amarelos,
Em pardos e pálidos... As pedras
Que brilham são eternas,
As pessoas opacas são efêmeras
Queira ou não a filosofia
Desses extremos...

Entre turvos

Talvez tarde demais
Descubro poetas novos
Na minha nomenclatura...
Os mais antigos sempre
Me foram melhores
Entre os turvos...
Nesse palco me distraio
Em versos e não versos
Entre os ditos...









Resmungos

Com cara e coragem
Desorganizo a vida...
Vem da infância
Essa mania esquisita
De pernoitar lá fora
Entre latidos e folhas
Resmungando o tédio
De esperar a manhã
Que vem de longe
Prometendo a luz
Que não tem...







Estado de idas

Nessa idade d’hoje
Em qualquer rua andada
Me sinto em casa,
Como se soubesse de antes
Para onde ir embarreando,
Quando nem sei d’onde vim...
Talvez daquela serraria
Onde nasci... Ou talvez
Das estradas não andadas,
Ou ainda do apito do trem
Que passava convidando,
E nunca fui...









Pena que igrejas
Tenham tomado o lugar
Dos antigos cinemas,
Sem os mesmos filmes...






Perdemos várias liberdades
Com as promessas das idades,
O que ganhamos com isso?




Das engananças

O prometido pelas chances
Parece morrer na praia,
Onde guardar a esperança
Chamada futuro de amanhãs?
Quem disse que seria fácil,
Ou ao menos concrescível,
O de prima prometido?
Nas feituras, senhora Esperança,
Parece que todo o vivido
É só enganança...








Delongas

Se encontrasse com deus
Por agora, diria na dúvida:
-Por que demorou tanto?
Sem nem saber se espera
Possa seja demora...
Se a desesperação faça eco
Com as vontades sonhadas
Quando em criança...
Se o encontrasse assim,
Sem aviso, levaria tamanho
Susto na esperança...







Precário

Sei-me precário
Em quase tudo,
As precariedades
Talvez sejam
As minhas melhores
Qualidades...
Já que
Não somo vitórias
Mas também
Não me sei
Derrotado...







Das rasidades

É raro macho ser homem,
Ser de todo soletrado...
É raro pessoa ser gente,
Assim delatado e deletado...
Como criança vira gente
Se não tendo nascido gente?
Brigamos com nosso eito
De mão a mão passo a passo
Entre ser gente ou ser fato...









Idas ao meio do dia

Voltar de onde
Se não fomos
A lugar nenhum?
Quem sabe possamos
Partir ainda amanhã,
Que todo amanhã tem
Uma manhã desde cedo...
Quando o sol convidar, aceita,
Que o tempo vira meio dia
Num instante...








Vigências

Não espere as férias,
Espere os dias...
Que os dias
São subsequentes
A cada melancolia...
Os dias formam horas,
Bordam e empilham
Lenhas e camisas...
Não espera férias,
As faz vigentes
Nas manhãs que chegam
Assim de repente...






Varantes

De onde brotam os livros
Nas cabeças desusadas?
Pode seja de sonhados,
Ou de nadas...
Apenas nascem na cabeça
Do curioso impetrado
Nessas cabeças varantes
De passados...










Para lá da linha de trem

Quem mora depois da linha
Sabe a hora do trem passando,
Mas nem sonha pegar o trem,
Que passa resfolegando...

Quem mora depois da linha
Vive numa segunda pessoa,
A que sonha bolo e broa,
Quando ele passa jactando,

Para lá da linha desse trem
 Outra voz recriminando
O sonho superado tonto...

Passa como quem nem sabe
 Se haja gente depois da linha,
Lhe esperando...

Tempos velhos

Moro numa cidade
Que inda não fez história,
Que história demanda
Tempo vivido e estroçado...
A cidade em que nasci
Também não formou inda
Sua destroção planejada
Pelos musgos dos tempos,
Que sobrevivem aos tempos
Se os tempos forem velhos
Com suas muletas de erros
E forçarem essas velhas
Cidades serem refeitas
De suas maleitas...




Luto

O luto faz necessário
Outros motivos pra vida...
Assim como inundações
Reconstroem cidades
Obrigatoriamente,
O luto propõe mudanças
E força a esperança
Tomar lugar cedido
Ao desespero...









O infinito tão curto

Com uma pequena lente
Espio o mundo
Em sua grandeza de graça...
Com uma pequena mala
Arrumo o que levar adiante...
Assim caminhamos sempre,
Olhando para frente...
Com essa maleta me arrumo
Para a viagem premente,
Mesmo que não seja pressa
O melhor motivo para a ida,
Mas quando abro a janela
E o infinito é tão curto,
Sei que devo ir adiante,
Ver o outro lado do muro...

sergiodonadio

Coxeios

Há o belo no feio,
Desde que visto adentro,
Entre as rugas e rusgas
Cá de fora...
O feio que fica belo
Depende desse olhar
Que vê além da verdade
A outra verdade feita
De sonhos reconciliáveis
Com a realidade dos dias...
Eu não coxo mas
Não vejo bem o outro,
Que não ouço...





Risco

Eu vou riscar
Um desenho falado
Numa língua nova,
A língua que sei o fazer
Que me ampara...
Quero fazer um desenho
Em branco e preto,
Que a cor vem da ideia
Descrita em cores vivas
Num papel transladado
De outra esfera,
O passado
Que me espia...





Pentecoste

Toda espera é pentecostal,
Para os cristãos são sete
Semanas de espera
Pela vinda da divindade...
Para os judeus cinquenta dias
De espera para a saída do Egito.
Para nós, descrentes de hoje,
São as esperas pela contagem
Dos dias sem pandemia
Que na espera principia...










A verdade é que
Enquanto o jovem carrega força
O adulto carrega a culpa...






Não aceito a morte como fim,
Mas como uma mudança,
Talvez para melhor assim
Para esperança...






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